
A grande distração
Se o século XXI nos ensinou algo, é que podemos estar à caminho da extinção. Também nos ensinou que esse caminho é fantástico para capitalizar. Enquanto as geleiras derretem, o venture capital sobe como o nível do mar.
Num coworking com kombucha na torneira, uma startup lança um tênis feito de plástico reciclado com um QR code que acompanha sua pegada de carbono em tempo real. Produzido em cinco países, o modelo percorre mais milhas que a média dos seus usuários — mas promete compensação automática via blockchain, com a promessa de net zero.
Do outro lado da avenida, uma gigante do fast fashion — aquela cujas etiquetas foram encontradas aos milhares nas praias perto do mercado de Kantamanto, em Gana (o maior mercado de roupas usadas do mundo, e o lixão favorito do Norte Global para as tendências da estação passada) — lança uma fundação para apoiar groundbreaking innovation. A primeira iniciativa da fundação é apoiar as melhores ideias para escalar a produção de fibras têxteis criadas em laboratório. Os acionistas vão ficar felizes em saber, na próxima board meeting, que podem continuar aumentando as vendas enquanto definem metas ainda mais ousadas de redução de emissões de gases de efeito estufa.
Do outro lado do Atlântico, 850 famílias agricultoras em uma comunidade no cinturão do desmatamento do Cerrado plantam algodão seguindo os ciclos da natureza. Em sequeiro, sem pesticida. Caroço de açaí vira adubo. Alguém ouviu dizer que o bicudo, a maior ameaça do algodoeiro, não gosta do cheiro de coentro, e as mulheres se juntaram para discutir plantar a erva entre as fileiras de algodão. Seria uma bela inovação. Mas coentro precisa irrigar. E desde o ano passado, quando não conseguiram vender o que o mercado chama de commodity por um preço justo, precisam ser cuidadosas com as despesas.
A empresa de fast fashion que criou aquele fundo é uma que não fechou essa compra por falta do (caro) certificado orgânico regenerativo. O gerente de compras, que sonha um dia visitar uma plantação, explicou que a empresa ainda não tem capacidade de verificar impactos sociais e ambientais locais por conta própria.
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O colapso climático virou oportunidade de inovação e desafio de branding — provar que a sua ideia é mais ética, escalável, disruptiva. Enquanto isso, comunidades tradicionais vêm segurando o que resta da sabedoria ecológica, amarrando os retalhos com o bom e velho cipó. E a gente aqui, distraído, dobrando vinte ecobags biodegradáveis cujas cadeias produtivas testaram cinco tecnologias diferentes de rastreabilidade.
Enquanto o planeta queima (e alaga, e derrete), algumas das mentes mais brilhantes estão ocupadas reinventando a roda biodegradável — muitas vezes com grande prejuízo financeiro, mas excelente retorno de personal branding.
E algumas das verdadeiras soluções para o colapso climático estão bem na nossa frente. Velhas. Comprovadas. Entediantes. Impatenteáveis. Sem glamour.
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A verdade é que a gente já resolveu isso. “Mas dá pra patentear?”
Essa história é sobre distração.
É sobre como já temos muitas das soluções de que precisamos — mas como elas não são lucrativas ou chamativas perdem espaço e financiamento para inovação sustentável como arte performática. Muitas vezes um teatro caro, ineficiente, e movido pelo ego do otimismo tecnológico verde. Bem-vindos à Economia Circular da Ilusão Coletiva. Por favor, recicle seus sonhos na saída.
Corporações despejam milhões em fibras Next-Gen um pouco mais recicláveis, que viram milhares da mesma peça com a estampa-tendência, e costuradas com fio de poliester — contanto que prometam uma revolução, mencionem "escala" pelo menos duas vezes no pitch, e essa revolução não envolva pagar melhor os agricultores.
Enquanto isso, o algodão agroecológico — ancestral, enraizado no coletivo e no Buen Vivir — é descartado como ultrapassado e rebatizado de regenerativo. E num piscar de olhos, versões corporativas do regenerativo acomodam o uso de químicos, desde que seja “um pouco menos”, e o solo esteja sequestrando carbono. Afinal, a saúde dos agricultores não cabe no projeto neocolonial-extrativista.
Linho, cânhamo e práticas têxteis indígenas seguem sem apoio, barrados por legislação, modelos de precificação, ou incapacidade do mercado de acomodar sistemas nos quais muitos pequenos lucram e prosperam.
Na lógica da inovação para a sustentabilidade, nada é real se não falar a linguagem ilusória dos mercados. É assim que a agroecologia se torna obsoleta e as práticas indígenas são tratadas como folclore, enquanto um material fermentado em biorreator é celebrado.
Se parássemos de criar novos problemas, talvez percebêssemos que formas coletivas, locais, descentralizadas (e sem marca) de produzir já nos deram a maioria das soluções de que precisamos. Mas elas parecem repetição, não disrupção. Confiança, não tecnologia. E como são antigas, são desclassificadas. Analógicas demais para preencher relatórios. Humildes demais para escalar.
“O ser humano interfere, faz algo errado, não conserta o estrago, e quando os resultados negativos se acumulam, ele se empenha ao máximo para corrigir o problema. Quando essas ações corretivas parecem funcionar, ele passa a vê-las como grandes conquistas.
É como se um tolo pisasse nas telhas de seu telhado e as quebrasse. Aí começa a chover, o teto apodrece, e ele corre para consertar o estrago, celebrando depois como se tivesse realizado um milagre.
É o mesmo com o cientista. Ele passa noites e dias sobre os livros, forçando a vista até ficar míope — e se você se pergunta o que ele estava fazendo o tempo todo... era inventar óculos para corrigir a miopia.”
— Masanobu Fukuoka